Ele abre a porta da sala com um certo fastio e dá um passo para o lado, a fim de deixar a sombra entrar. A expressão em seu rosto é desolada, uma tristeza contida, uma melancolia resignada. Sabe que sua vida está bloqueada e que não há nada que ele possa fazer para desimpedi-la.
Antes de entrar, a sombra pára na soleira da porta e espia o interior da sala, curiosa. É um vulto escuro, de contornos difusos e, mesmo assim, seu rosto, desprovido de olhos, nariz ou boca, consegue expressar cada pequena nuance de emoção. A sombra é alta, mais alta que ele, e esguia. Seus movimentos são graciosos, espontâneos e amplos, num agudo contraste com os modos contidos do dono do apartamento.
- É um cafofo simpático, o que você tem aqui – diz a sombra, com aparente sinceridade, mas deixando entrever uma certa nota de ironia na voz.
- É, eu gosto de viver aqui – ele responde, numa voz sem entonação.
- Se importa se eu sentar? – antes mesmo que ele responda, a sombra já se encaminha para o sofá.
- O que você quer aqui? – ele pergunta, não inteiramente satisfeito com os modos despachados da sombra.
- Não sei, foi você que me chamou.
- Eu?
- Fiquei até surpreso. Você sempre me ignorou, nunca quis falar comigo, nem sequer olha na minha cara. E de repente, do nada, me pede pra vir aqui.
- Quando foi que eu pedi pra você vir?
A sombra dá uma risada.
- No momento em que abriu a porta.
- Mas foi você quem tocou a campainha! – ele protesta.
- Há anos que eu venho tocando essa campainha, e você nunca atendeu – retruca a sombra, com simplicidade. – Se abriu agora, só posso presumir que você precisa de mim.
- Por que eu precisaria? – diz ele, com uma perplexidade crescente.
- Ora vamos, não vai me dizer que você está satisfeito com a sua vida!
- Podia ser melhor, mas também podia ser pior. No geral, eu diria que, sim, estou bastante satisfeito.
A sombra dá de ombros, como se o assunto todo não lhe tivesse o menor interesse.
- Você diz uma coisa, teu rosto diz outra. Em quem eu devo acreditar?
- O que me importa isso? – ele agora começa a demonstrar uma certa irritação.
- Ah, mas importa, sim! – a sombra levanta e caminha até ele, que continua parado junto à porta, sem se decidir a fechá-la.
- Entenda, eu posso diminuir a sua dor. Tudo o que você tem a fazer é pedir.
- Como você faria isso?
- Eu tenho reservas praticamente inesgotáveis de energia.
- E tudo isso será meu, se eu te adorar? – ele cita, as palavras vibrando de ironia.
- Acho que você está confundindo um pouco as coisas. Eu não sou desses.
- Ah, não? Então, o que você é?
- Uma sombra, não está vendo?
- Sombra de quem? Sombra do quê?
A sombra torna a gargalhar, aproximando sua boca invisível do ouvido dele.
- Não é óbvio? Tua sombra! De quem mais seria? – depois de cochichar essas palavras, ela vai até o centro da sala, sobre o tapete decorado com motivos indígenas, e abre os braços, dramaticamente:
- E como sua sombra, eu obviamente tenho tudo o que lhe falta.
- O que é que me falta?
- Energia, já disse. Disposição, ânimo. Garra. Ambição.
- Não quero ser ambicioso.
- Ah, mas você é ambicioso! Apenas não reconhece isso.
Ele não responde.
- A ambição não é necessariamente uma coisa ruim. Jesus Cristo era ambicioso.
- Cristo?
- Salvar o mundo, quer projeto mais ambicioso que esse?
- Isso eu também quero.
- Então, precisa aprender a aceitar sua cruz. É o preço que se pega.
- Qual é a minha cruz?
- Eu sou a sua cruz! – a sombra o encara como se estivesse falando com o aluno retardado da classe, aquele que é o último a perceber o óbvio ululante.
- Então, aceitar você é o preço a pagar pra que você me ajude.
- Parece justo, não parece?
Ele pondera:
- E o que exatamente você ganha com isso?
- A sua companhia, claro! Admito que não é uma companhia das mais brilhantes, mas é melhor do que o fosso sem luz onde eu habitualmente vivo…
- Parece fácil.
- As coisas nem sempre são o que parecem.
- Não é fácil?
- Também não disse que é difícil.
- Estou confuso.
- Pra quem sempre teve tantas certezas, estar confuso é um bom sinal.
Ele não parece convencido. A sombra torna a se aproximar, coloca uma mão amigável em seu ombro:
- Vamos fazer o seguinte. Você me deixa ficar por uns dias e vê como as coisas rolam. Se gostar, eu continuo. Do contrário, pode me mandar de volta. – Faz uma pausa, espera que ele absorva a proposta. – Feito?
- Quem me garante que você vai mesmo embora se eu quiser?
- Não confia em mim?
- Não.
- Faz bem. Eu também não confio em você. Então, estamos quites – estende a mão para ele: – Feito? – repete.
Ele suspira e aperta a mão que a sombra lhe estende.
- Tenho a impressão de que este é o início de uma bela amizade! – comemora a sombra.
Ele fecha a porta. A sombra permanece na sala.
Extraído do site O Franco-Atirador
Um comentário:
Jung fala muito sobre a sombra que também somos e negamos incalsavelmente... Na verdade, a Psicologia toda luta para isso: que consigamos reconhecer nossos lados que socialmente são menos "vangloriáveis", encontrando espaço para vivermos o que somos, integral e plenamente felizes. Nada fácil...
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