sábado, 17 de março de 2007

Diálogo com a Sombra

Ele abre a porta da sala com um certo fastio e dá um passo para o lado, a fim de deixar a sombra entrar. A expressão em seu rosto é desolada, uma tristeza contida, uma melancolia resignada. Sabe que sua vida está bloqueada e que não há nada que ele possa fazer para desimpedi-la.

Antes de entrar, a sombra pára na soleira da porta e espia o interior da sala, curiosa. É um vulto escuro, de contornos difusos e, mesmo assim, seu rosto, desprovido de olhos, nariz ou boca, consegue expressar cada pequena nuance de emoção. A sombra é alta, mais alta que ele, e esguia. Seus movimentos são graciosos, espontâneos e amplos, num agudo contraste com os modos contidos do dono do apartamento.

- É um cafofo simpático, o que você tem aqui – diz a sombra, com aparente sinceridade, mas deixando entrever uma certa nota de ironia na voz.

- É, eu gosto de viver aqui – ele responde, numa voz sem entonação.

- Se importa se eu sentar? – antes mesmo que ele responda, a sombra já se encaminha para o sofá.

- O que você quer aqui? – ele pergunta, não inteiramente satisfeito com os modos despachados da sombra.

- Não sei, foi você que me chamou.

- Eu?

- Fiquei até surpreso. Você sempre me ignorou, nunca quis falar comigo, nem sequer olha na minha cara. E de repente, do nada, me pede pra vir aqui.

- Quando foi que eu pedi pra você vir?

A sombra dá uma risada.

- No momento em que abriu a porta.

- Mas foi você quem tocou a campainha! – ele protesta.

- Há anos que eu venho tocando essa campainha, e você nunca atendeu – retruca a sombra, com simplicidade. – Se abriu agora, só posso presumir que você precisa de mim.

- Por que eu precisaria? – diz ele, com uma perplexidade crescente.

- Ora vamos, não vai me dizer que você está satisfeito com a sua vida!

- Podia ser melhor, mas também podia ser pior. No geral, eu diria que, sim, estou bastante satisfeito.

A sombra dá de ombros, como se o assunto todo não lhe tivesse o menor interesse.

- Você diz uma coisa, teu rosto diz outra. Em quem eu devo acreditar?

- O que me importa isso? – ele agora começa a demonstrar uma certa irritação.

- Ah, mas importa, sim! – a sombra levanta e caminha até ele, que continua parado junto à porta, sem se decidir a fechá-la.

- Entenda, eu posso diminuir a sua dor. Tudo o que você tem a fazer é pedir.

- Como você faria isso?

- Eu tenho reservas praticamente inesgotáveis de energia.

- E tudo isso será meu, se eu te adorar? – ele cita, as palavras vibrando de ironia.

- Acho que você está confundindo um pouco as coisas. Eu não sou desses.

- Ah, não? Então, o que você é?

- Uma sombra, não está vendo?

- Sombra de quem? Sombra do quê?

A sombra torna a gargalhar, aproximando sua boca invisível do ouvido dele.

- Não é óbvio? Tua sombra! De quem mais seria? – depois de cochichar essas palavras, ela vai até o centro da sala, sobre o tapete decorado com motivos indígenas, e abre os braços, dramaticamente:

- E como sua sombra, eu obviamente tenho tudo o que lhe falta.

- O que é que me falta?

- Energia, já disse. Disposição, ânimo. Garra. Ambição.

- Não quero ser ambicioso.

- Ah, mas você é ambicioso! Apenas não reconhece isso.

Ele não responde.

- A ambição não é necessariamente uma coisa ruim. Jesus Cristo era ambicioso.

- Cristo?

- Salvar o mundo, quer projeto mais ambicioso que esse?

- Isso eu também quero.

- Então, precisa aprender a aceitar sua cruz. É o preço que se pega.

- Qual é a minha cruz?

- Eu sou a sua cruz! – a sombra o encara como se estivesse falando com o aluno retardado da classe, aquele que é o último a perceber o óbvio ululante.

- Então, aceitar você é o preço a pagar pra que você me ajude.

- Parece justo, não parece?

Ele pondera:

- E o que exatamente você ganha com isso?

- A sua companhia, claro! Admito que não é uma companhia das mais brilhantes, mas é melhor do que o fosso sem luz onde eu habitualmente vivo…

- Parece fácil.

- As coisas nem sempre são o que parecem.

- Não é fácil?

- Também não disse que é difícil.

- Estou confuso.

- Pra quem sempre teve tantas certezas, estar confuso é um bom sinal.

Ele não parece convencido. A sombra torna a se aproximar, coloca uma mão amigável em seu ombro:

- Vamos fazer o seguinte. Você me deixa ficar por uns dias e vê como as coisas rolam. Se gostar, eu continuo. Do contrário, pode me mandar de volta. – Faz uma pausa, espera que ele absorva a proposta. – Feito?

- Quem me garante que você vai mesmo embora se eu quiser?

- Não confia em mim?

- Não.

- Faz bem. Eu também não confio em você. Então, estamos quites – estende a mão para ele: – Feito? – repete.

Ele suspira e aperta a mão que a sombra lhe estende.

- Tenho a impressão de que este é o início de uma bela amizade! – comemora a sombra.

Ele fecha a porta. A sombra permanece na sala.

Extraído do site O Franco-Atirador

Um comentário:

Natalie Dowsley disse...

Jung fala muito sobre a sombra que também somos e negamos incalsavelmente... Na verdade, a Psicologia toda luta para isso: que consigamos reconhecer nossos lados que socialmente são menos "vangloriáveis", encontrando espaço para vivermos o que somos, integral e plenamente felizes. Nada fácil...