sexta-feira, 16 de março de 2007

O dia do juízo

Mirdad fala a Bennoon:

Cada dia, Bennoon, é um Dia de Juízo. A conta corrente de cada criatura entra em balanço a cada abrir e fechar de olhos. Nada fica escondido, nada deixa de ser pesado.
Não há pensamento, ação ou desejo que não seja registrado no pensador, no agente ou no que desejou. Nenhum pensamento, nenhum desejo, nenhuma ação ficam estéreis neste mundo, mas todos se reproduzem de acordo com a sua espécie e a sua natureza. Tudo o que está de acordo com a Lei de Deus é colhido para a Vida. Tudo o que a ela se opõe é colhido para a Morte.

Os teus dias não são todos iguais. Bennoon. Alguns são serenos; são a colheita de horas bem vividas. Alguns são nublados; são o dádiva das horas meio-adormecidas na Morte e meio-alertas na Vida. Há outros que se fustigam na tormenta, com coriscos nos olhos e trovões nas ventas. Esmagam-te de cima; chicoteiam-te de baixo; atiram-te para a direita e para a esquerda; achatam-te de encontro ao solo e fazem-te comer o pó e desejares jamais haver nascido. Esses são os frutos das horas gastas em oposição propositada à Lei.

Assim é o mundo. As sombras que já ameaçam desde os céus não são em nada menos sinistras do que aquelas que anunciaram o Dilúvio. Abri os vossos olhos e vede.

Quando observais as nuvens caminhando para o Norte, sopradas pelo vento Sul, dizeis que elas trazem chuva. Por que não sois tão sábios em observar a direção para a qual caminham as nuvens humanas? Não podeis ver até que ponto os homens se enrascaram nas suas próprias redes?

O dia de desenrascar está próximo. E que dia de prova vai ser!

As redes dos homens têm sido tecidas com veias do coração e da alma, durante muitos, muitíssimos séculos. Para livrar os homens das suas próprias redes, será preciso rasgar-lhes as carnes; o próprio tutano dos seus ossos terá de ser esmagado. E os próprios homens terão de rasgar, eles mesmos, as suas carnes e esmagar, eles mesmos, os seus ossos.

Quando as tampas forem levantadas – como certamente serão – e quando as panelas despejarem os seus conteúdos – como certamente o farão – onde esconderão os homens a sua vergonha e para onde fugirão?

Nesse dia os vivos invejarão os mortos, e os mortos amaldiçoarão os vivos. As palavras dos homens lhes ficarão presas na garganta, e a luz se congelará nas suas pálpebras. De seus corações sairão escorpiões e víboras, e eles gritarão, atemorizados: “De onde vêm estas víboras e estes escorpiões?”, esquecidos de que os haviam criado e alojado em seus corações.

O Livro de Mirdad
Mikhail Naimy

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