terça-feira, 12 de setembro de 2006

O mal necessário

Do modo como vejo as coisas, a grande limitação da psicologia (junguiana inclusive) e o motivo pelo qual ela ainda não conseguiu se tornar um verdadeiro sistema iniciático é a incapacidade que os psicólogos têm de conceber uma consciência desprovida de ego quando, na verdade, consciência e ego são duas coisas bem diferentes, que acabaram se fundindo por conta das necessidades intrínsecas da primeira metade do processo de individuação (daqui a pouco, eu falo mais sobre isso). Desse ponto-de-vista, o caminho iniciático é o longo (e quase sempre doloroso) processo de desfazer esse imbroglio, quebrando a identificação ilusória da consciência com o ego.

O ovo e a galinha – O motivo pelo qual é tão difícil para nós pensar na consciência como uma entidade separada do ego é que, pelo menos num primeiro momento, essa distinção não é empírica. Somente em alguns estados muito especiais, do tipo que costumamos classificar como experiências místicas, é que a consciência consegue ver o ego de fora, como algo que não é ela. Claro, o objetivo de toda iniciação ou desenvolvimento espiritual é fazer com que esses estados deixem de ser momentos excepcionais de epifania e se tornem uma condição permanente. Mas, no nosso nível habitual de funcionamento, aquele em que operamos no dia-a-dia, toda vez que a consciência pensa em si mesma, ela se vê como um eu individual.

Para piorar, devido à natureza limitada da linguagem, a consciência só pode se referir a si própria dizendo eu, o que apenas contribui para reforçar essa identificação. Determinar o que veio primeiro, o eu gramatical (como pensavam Nietzsche e Lacan) ou a ilusão do ego (como sugeriu Freud e parecem indicar as descobertas da neurociência sobre o funcionamento do cérebro), é uma questão do tipo o ovo ou a galinha e realmente não faz diferença. O fato é que, gerada pela estrutura da linguagem ou pelo modo de funcionamento do cérebro, a ilusão do ego acaba moldando nossa autoconsciência de uma forma que parece natural e é difícil superá-la.

Por exemplo, em seus comentários (de resto, altamente pertinentes), Rubens diz: “Penso que o problema não é propriamente o ego, mas sim a rigidez em que se encontra tomado.” Mas, em última análise, levando em conta o que eu falei aí em cima, o ego é essa rigidez. “Couraça de caráter” é uma expressão enganosa, porque o que o Reich descobriu é que a couraça não é uma capa externa que vem se acrescentar ao caráter. Pelo contrário, caráter é couraça e couraça é caráter. E o caráter é, afinal, outro nome que a gente dá para esse conjunto de traços de personalidade, comportamento e postura (física ou psicológica) que formam o complexo do ego.

O fotograma e o filme – A capacidade plástica a que o Rubens se refere em outro trecho não é um atributo do ego, mas da consciência pura. Falamos de “estados da consciência”, mas essa é outra frase mal-construída, porque a consciência não é um estado, nem mesmo uma soma de estados, e sim um processo fluido, em constante transformação. É isso, aliás, que o Buda quer dizer quando se refere à impermanência de todas as coisas, acrescentando que o corolário disso é a inexistência do ego.

O ego surge quando esse processo é, por assim dizer, congelado artificialmente, tornando-se um estado com o qual a consciência se identifica. Uma boa analogia para entender essa distinção é pensar na consciência como um filme e no ego como um fotograma isolado do filme. Quando interrompemos o andamento do filme, o fotograma deixa de ser parte de um movimento contínuo e se torna um quadro estático. O ego é esse quadro estático.

O problema é que, ao contrário do filme, o movimento da consciência nunca se interrompe de verdade. Então, quando a consciência se identifica com o ego, ela se aliena de si mesma, torna-se incapaz de acompanhar o seu próprio movimento interno. A consciência fica fora de fase. Acreditamos que somos permanentemente o que já não somos mais, o que fomos durante um breve intervalo, para imediatamente nos transformamos em outra coisa que não conseguimos perceber, porque nosso ponto-de-vista ficou parado lá atrás. A fila andou e nós não seguimos com ela. É nesse ponto que a impermanência torna-se causa de sofrimento, a terceira das características da existência descritas pelo Buda.

Solve et coagula – No entanto, se o ego não só é uma ilusão, mas ainda por cima uma ilusão prejudicial e dolorosa, como é que ele veio a se constituir? A resposta está na maneira pela qual a consciência vem a se diferenciar do inconsciente na primeira metade da vida, o que, desde Erich Neumann, os analistas junguianos tendem a considerar como a fase inicial do processo de individuação.
Inicialmente, não existe a consciência. Há apenas um estado inconsciente, no qual todos os conteúdos psíquicos estão mais ou menos fundidos num amálgama indiferenciado. A consciência é apenas um potencial contido nessa mistura caótica. Para que ela possa se atualizar (no sentido aristotélico, isto é, se tornar real, passar da potência ao ato), a consciência precisa se separar do inconsciente. Mas, para isso, é preciso criar um espaço dentro do qual ela possa emergir e se desenvolver. Esse espaço é o ego.
Os alquimistas costumavam dizer que a Grande Obra podia ser resumida na frase solve et coagula. O mesmo se aplica à individuação. A totalidade inconsciente precisa ser dissolvida para que a consciência possa se coagular. Na alquimia, essa operação requer um recipiente hermeticamente fechado, o vaso alquímico. É essa a função do ego na primeira metade da individuação, que vai mais ou menos até os 30 ou 40 anos: fornecer o que Jung chamava de temenos, um espaço sagrado, no interior do qual os processos psíquicos possam se desenvolver em liberdade. Esse espaço é sagrado porque, como mostrou Mircea Eliade, o sagrado é exatamente a separação ritual entre o caos e a ordem.

Destruir um mundo – Sim, o corolário disso é que, no início, enquanto a consciência está emergindo do inconsciente, o ego, o demiurgo, o futuro vilão e encarnação do demí´nio, tem um papel sagrado a cumprir. Se ele se tornará Satã é porque antes foi Lúcifer, o portador da luz da consciência.

Os alquimistas denominavam o vaso alquímico de ovo filosófico e, de fato, o ego pode ser visto como um ovo no interior do qual o embrião da consciência se desenvolve e toma forma, nutrindo-se da experiência personalizada que a perspectiva egóica fornece. Outra comparação pertinente é dizer que o ego é um casulo, e não é outra a razão pela qual os gregos representavam a psique com asas de borboleta.
Entretanto, os alquimistas também diziam que, no final da Grande Obra, o ovo filosófico se quebra, para que a pedra filosofal possa ser extraída de dentro dele. Se a borboleta não consegue romper o casulo, ela morre asfixiada e chega um momento em que a ave precisa quebrar a casca do ovo com o bico para poder nascer, o que Hermann Hesse exprimiu em uma bela passagem de seu primeiro romance iniciático, Demian: “A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo. A ave voa para Deus. E o deus se chama Abraxas.”

Felix culpa - Romper a totalidade inconsciente é romper a totalidade, ponto. Ao se separar do inconsciente indiferenciado, a consciência se separa de suas raízes arquetípicas. Assim, o nascimento da consciência é, necessariamente, um ato de alienação. Cria-se uma antítese, uma dualidade entre eu e não-eu, entre sujeito e objeto, que dá origem a todas as outras dualidades: bem e mal, certo e errado, masculino e feminino. É por isso que, quando o homem prova da árvore do Conhecimento, adquire a consciência, mas uma consciência dualista, e é expulso do paraíso.

Com isso, as paredes do ego, que protegem a consciência da invasão de conteúdos inconscientes, também são os muros de sua prisão. Em algum momento, esses muros terão de ser derrubados, a fim de que a totalidade possa ser restaurada em um novo nível. É esse o momento em que Lúcifer se torna Satã, o obstáculo, o opositor (em hebraico, shaitan): o ego deixa de ser um fator positivo de crescimento espiritual para se tornar uma casca ou couraça que impede a consciência de se expandir por meio da integração dos conteúdos arquetípicos do inconsciente, até atingir a plena realização do Si-mesmo.

Em resumo, o ego é necessário, mas é também um mal. É um mal necessário. A antiga teologia católica exprimia essa dupla valência do ego na doutrina da felix culpa, a culpa feliz, que até a década de 1960 encontrava-se incorporada no texto da missa em latim: O felix culpa quae talem et tantum meruit habere redemptorem. (”Ah, culpa feliz, que a tornou digna de um tal redentor.”) O redentor a que ela se refere é, claro, Cristo, mas em sentido simbólico é a consciência do Si-mesmo, o Atman hindu, ou seja, a consciência emancipada do ego, que realiza a totalidade psicofísica. A doutrina da felix culpa, aliás, não é exclusiva do cristianismo. Nós a encontramos no final de O Dibuk, de S. Ansky, um dos pontos altos da dramaturgia judaica e uma peça cheia de ressonâncias cabalísticas: “A própria queda continha em si a promessa da redenção.”

O Franco Atirador

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